Por: Por Elton Alisson
Agência
FAPESP – A indústria alimentícia de diversos países tem utilizado uma nova
ferramenta para melhorar a segurança e a qualidade microbiológica de seus
produtos. Trata-se da microbiologia preditiva – um sistema baseado em
modelagens matemáticas e estatísticas, realizadas por softwares, para prever o
comportamento de microrganismos em alimentos frescos ou processados.
O
novo método se apoia no princípio de que a capacidade de as bactérias e fungos
se multiplicarem nos alimentos depende de propriedades do produto, como
composição, acidez, umidade, teor de sal e de antimicrobianos presentes, além
das condições de temperatura, tempo, umidade relativa e atmosfera nas quais é
mantido. Dessa forma, o efeito de cada um desses fatores no alimento pode ser
calculado matematicamente, por meio de diferentes modelos preditivos.
Em
razão de uma série de benefícios que apresenta, o método vem substituindo a
forma tradicional de avaliar os riscos de contaminação de alimentos, feita
atualmente por meio de análises microbiológicas em laboratório, que além de
cara é limitada, uma vez que os resultados são válidos exclusivamente para a
amostra avaliada, segundo pesquisadores da área.
“Como
os microrganismos não se distribuem de modo uniforme em um alimento, é preciso
fazer análises microbiológicas de muitas amostras do produto para concluir se
ele é seguro ou não para o consumo”, disse Bernadette Dora Gombossy de Melo
Franco, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade
de São Paulo (USP), à Agência FAPESP.
“A
modelagem preditiva leva em conta os aspectos estatísticos da variabilidade e
da incerteza das medições, aliada à imprecisão dos métodos laboratoriais de
análise, para chegar a essas conclusões”, explicou Franco, que é coordenadora
do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC, na sigla em inglês) – um dos Centros
de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.
De
acordo com Franco, com a modelagem é possível prever qual será a vida útil
(prazo de validade) de um determinado alimento e saber o que pode ser feito, do
ponto de vista tecnológico, para melhorá-la.
Por
meio de cálculos matemáticos pode-se avaliar, por exemplo, qual o
comprometimento da vida útil de salsichas se, em vez de serem comercializadas
refrigeradas a 12 ºC, como recomendam os fabricantes, forem vendidas a 15 ºC ou
a 18 ºC. Ou ainda saber qual o efeito da adição de um novo conservante na
formulação ou do uso de uma nova tecnologia de processamento do produto.
O
método também pode ser usado para fazer avaliações quantitativas de risco à
saúde do consumidor, dependendo do microrganismo patogênico considerado, das
condições de produção e comercialização e da forma de consumo, “desde a fazenda
até o garfo”, segundo Franco.
“No
Brasil, há em geral uma subnotificação de casos de enfermidades transmitidas
por alimentos, causadas por microrganismos contaminantes, e sabemos que esse
problema é bem maior do que imaginamos”, disse a pesquisadora.
“Os
fatores climáticos e as grandes distâncias entre o local de produção e o de
consumo favorecem essas ocorrências, principalmente se as condições de
transporte forem impróprias”, ressaltou.
ESPCA
sobre o tema
A
fim de disseminar o uso e a aplicação do novo método no Brasil, o Departamento
de Alimentos e Nutrição da FCF realizou, entre os dias 28 de outubro e 5 de
novembro, a São Paulo School of Advanced Science – Advances in predictive
modeling and quantitative microbiological risk assessment of foods.
Coordenada
por Franco e realizada no âmbito da Escola São Paulo de Ciência Avançada
(ESPCA) – modalidade de apoio da FAPESP que financia cursos de curta duração em
pesquisa avançada nas diferentes áreas do conhecimento –, o evento reuniu
dezenas de estudantes e 17 renomados pesquisadores – provenientes dos Estados
Unidos, Dinamarca, Malta, Reino Unido, Espanha, Holanda, Bélgica, Austrália,
França, Grécia e do Brasil –, especialistas em microbiologia preditiva. Entre
eles Paw Dalgaard, professor da Universidade Técnica da Dinamarca.
O
pesquisador e colegas de seu grupo de pesquisa em microbiologia preditiva
desenvolveram um software para prever o efeito das condições de temperatura
constante e variável no prazo de validade de peixes e frutos do mar de águas
temperadas e tropicais e no crescimento de bactérias deteriorantes desses
produtos, como a Photobacterium phosphoreum e a Shewanella puftefaciens.
Disponibilizado
gratuitamente na internet, o software pode auxiliar a indústria pesqueira a
prever o crescimento de bactérias patogênicas em peixe fresco, por exemplo,
afirma o pesquisador.
“A
taxa de refrigeração é um parâmetro muito importante tanto para a ‘vida de
prateleira’ quanto para a segurança de pescados e frutos do mar”, disse
Dalgaard.
“Na
prática, alimentos frescos e ligeiramente conservados, como peixes e frutos do
mar, podem ser conservados a temperaturas entre 0 ºC e 15 ºC, mas em regiões
tropicais não raro são expostos a temperaturas acima dessa faixa, facilitando o
crescimento de bactérias deteriorantes do produto”, avaliou.
Na
Dinamarca, por meio da diminuição e do controle da temperatura de conservação
dos pescados comercializados pela indústria pesqueira do país feitos com base
em modelagens microbiológicas, foi possível retirar o uso do sal nesses
produtos como conservante, contou o pesquisador.
Demorou
muito anos, no entanto, para a indústria pesqueira dinamarquesa compreender
como a modelagem preditiva poderia ser útil para diminuir os riscos de
contaminação dos pescados, ressalvou Dalgaard. “Foi necessário mudar toda uma
cultura de conservação seguida há décadas”, afirmou.
Outro
renomado pesquisador participante do evento foi József Baranyi, do Instituto de
Pesquisa em Alimentos em Norwich, no Reino Unido.
Considerado
o “pai” da modelagem preditiva, Baranyi desenvolveu e gerencia, com
pesquisadores da Austrália e dos Estados Unidos, a Combined dataBase for
predictive microbiology (ComBase, na sigla em inglês) – uma imensa base de
dados sobre o comportamento de microrganismos em diferentes condições nos
alimentos, além de uma coleção de modelos preditivos disponíveis na internet
para as mais variadas aplicações na indústria alimentícia.
Atraso
do Brasil
Além
da Dinamarca, do Reino Unido e de outros países europeus, os Estados Unidos já
adotam a modelagem preditiva.
O
Departamento de Agricultura norte-americano (USDA, na sigla em inglês), por
exemplo, desenvolveu, ainda nos anos 1980, um programa pioneiro de modelagem de
patógenos em alimentos – o Pathogen Modeling Program (PMP) – que inclui modelos
de crescimento, sobrevivência e inativação e é amplamente utilizado por
diversos países.
O
pesquisador Robert Buchanan, do Centro de Segurança dos Alimentos da
Universidade de Maryland, dos Estados Unidos, que participou do desenvolvimento
do PMP, foi um dos conferencistas da ESPCA sobre Modelagem Preditiva.
Já
no Brasil – um dos maiores exportadores de alimentos do mundo – há poucos
pesquisadores trabalhando nessa área, apontaram participantes do evento.
“A
comunidade de pesquisa nessa área precisa ser ampliada para não ficarmos atrás
do que o mundo faz hoje em termos de novas técnicas para diminuir as
consequências da contaminação microbiana em alimentos”, avaliou Franco. “Por
isso, foi importante a realização dessa escola na área no país.”
Franco
iniciou recentemente um projeto de pesquisa em parceria com colegas da
Universidade Técnica da Dinamarca.
Realizado
com apoio da FAPESP, no âmbito de um acordo assinado pela instituição com o
Danish Council for Strategic Research (DCSR), o projeto visa desenvolver uma
modelagem preditiva de contaminação cruzada de produtos cárneos por Salmonella
e Listeria monocytogenes durante as etapas de abate e processamento do produto.
Os
resultados do projeto permitirão à indústria e ao varejo estabelecerem sistemas
de controle, de modo a minimizar os riscos de contaminação dos produtos,
estimam os pesquisadores.
Pontos
críticos de controle
Em
razão do clima tropical do Brasil, os ingredientes alimentícios no país têm uma
carga de esporos bacterianos muito alta e com resistência térmica elevada,
apontaram pesquisadores participantes do evento.
Por
isso, segundo eles, é preciso desenvolver modelos de desinfecção química para
que as indústrias alimentícias brasileiras saibam qual o sanitizante e em que
concentração ele deve ser utilizado para desinfectar suas linhas de produção.
“Muitos
desses esporos bacterianos formam biofilmes ou recobrem as paredes dos equipamentos
e são de difícil eliminação”, explicou Pilar Rodriguez de Massaguer, professora
aposentada da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) e pesquisadora
colaboradora da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
“Se
houvesse modelos preditivos de desinfecção, as indústrias poderiam conhecer
melhor esses microrganismos e saber quais produtos podem utilizar para
eliminá-los”, apontou.
Como
é possível, eventualmente, que esses esporos bacterianos sobrevivam e saiam das
dependências das indústrias alimentícias, também são necessários modelos
preditivos que indiquem o tempo que os microrganismos que entraram em contato
com o alimento na fábrica durarão nas gôndolas dos supermercados antes de
germinar, crescer e contaminar o produto, indicou a pesquisadora.
No
interior dos supermercados, de acordo com Massaguer, também há a necessidade de
modelar, por exemplo, o efeito da variação da temperatura de conservação em
alimentos refrigerados.
“A
temperatura das câmaras de refrigeração dos supermercados no Brasil varia entre
10 ºC e 15 ºC, e nunca permanece a 4 ºC [a temperatura indicada de conservação
de alimentos refrigerados]”, disse Massaguer.
“É
necessário avaliar qual o efeito dessa temperatura variável na limitação da
vida útil em diversos alimentos à base de carne, frutas e leite produzidos no
Brasil”, afirmou.
Segundo
Massaguer, no Brasil a indústria alimentícia brasileira usa a modelagem
preditiva apenas para solucionar problemas específicos, por meio de contrato
com pesquisadores e especialistas da área, como o Labtermo da Unicamp, que ela
coordena e onde são desenvolvidos estudos sobre resistência térmica,
desinfecção e controle de microrganismos de interesse para a indústria.
E
não há, até o momento, investimento industrial para o desenvolvimento de
software para realização de microbiologia preditiva no país, apontou.
“A
modelagem preditiva é uma área multidisciplinar, que requer o envolvimento não
só de engenheiros de alimentos, como também de matemáticos e estatísticos. Este
entrosamento ainda é incipiente no Brasil”, afirmou Massaguer.
“Este
é um dos motivos pelos quais vem sendo pouco utilizada pelas indústrias
alimentícias brasileiras”, avaliou.
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